Um dos mais frequentes argumentos dos monárquicos a favor da restauração do trono é a imparcialidade do chefe de Estado, livre da disputa partidária implicita que ocorre actualmente a cada cinco anos. O rei seria necessariamente neutro por não depender do apoio de um ou mais partidos para ascender à chefia do país, mas valendo-se a si mesmo na posse do cargo.
O argumento não é inteiramente desprovido de sentido e eu até que concordo com ele, pelo menos em teoria e em parte. Mas se os monárquicos põem tanto ênfase na neutralidade política do monarca, não se percebe porque é que não agem de modo igual quando se trata de neutralidade religiosa. Porque é que a cabeça do Estado há-de ser livre de cor política, mas não de conotação de fé? Principalmente quando se está a falar de uma sociedade portuguesa moderna, plurireligiosa e com uma vivência civil que encara festividades religiosas de uma forma inteiramente profana e mundana. Há-de a monarquia implicar a oficialidade de uma crença num meio diversificado e em boa medida laicizado? A resposta é não. Não pode, nem deve! Uma monarquia moderna e aberta deve ser neutral em religião, sem exibir símbolos de uma ou mais fés e sem ritos religiosos em substituição ou como parte integrante de cerimónias de Estado. Naturalmente que isto implica reformas em parte já dadas a entender na bandeira neomonarquica.
A mais óbvia diz respeito à coroa, símbolo e objecto real. Depois de D. João IV tê-la oferecido a Nossa Senhora da Conceição que nenhum outro rei português voltou a ser coroado ou a usar sequer a coroa, motivo pelo qual os monarcas da dinastia de Bragança são sempre representados com o dito objecto ao seu lado e nunca na sua cabeça. Como a César cabe o que é de César, não se percebe porque é que o símbolo máximo da chefia do Estado deva permanecer propriedade de Deus ou, neste caso, de uma santa. Mas mais do que reclamar a coroa, é preciso que se use outra. Porquê? Por um lado para quebrar mais eficazmente com a tradição estabelecida por D. João IV e, por outro, porque a dos Bragança exibe no topo uma cruz cristã, logo o seu uso constituiria uma adesão formal a uma fé. Uma nova monarquia exige uma coroa nova à sua semelhança, aberta e livre de símbolos religiosos, passível de ser usada na cabeça do/a monarca e de ser representada nos símbolos oficiais de um Estado laico.
Já no que diz respeito às cerimónias do Estado, pela ausência de ritos de religião a coroação teria lugar num local neutro em fé, mas relevante para a estrutura política do país. A solução mais óbvia é o Parlamento, o mais alto orgão representativo da nação. Em sessão solene deste seria exibido um escudo com as armas de Portugal, lida a lista dos soberanos anteriores, o príncipe ou princesa herdeiro/a seria oficialmente confirmado como sucessor, faria o seu juramento e seria coroado/a pelo presidente da Assembleia Nacional. O reconhecimento dos filhos do casal reinante como membros da Casa Real seguiria um molde laico semelhante.
Nada disto impede, é claro, que a família real participe em cerimónias religiosas, mas fá-lo-á exclusivamente a título privado, sem qualquer estatuto oficial e sem que o rito de fé possa em caso algum subsituir a cerimónia secular. Porque a laicidade é um bem precioso e um garante de equidade, justiça e liberdade, há que valorizá-la e preservá-la.